Kung Fu e Desenvolvimento Humano: Lições de uma Jornada de Transformação – parte II
Quando um ensinamento recebido termina? Será que uma experiência transformadora pode ser ressignificada e acompanhar nossa metamorfose gerando efeitos por toda uma vida? Quais são os limites do que entregamos na vida das outras pessoas? Penso que muito do que recebemos tem potencial para nos acompanhar a vida toda e, quiçá, para além dela.
Vamos retomar nossa análise sobre a Visita da Liderança, inicialmente agradeço a sua disposição em acompanhar este compartilhamento de experiências, espero que possamos sair melhores dessa jornada do que entramos.
Ving Tsun (wing Chun) da Tradição ao Combate
Pois bem, para o Evento da Visita da Liderança escolhemos o Tema “Ving Tsun (wing Chun) da Tradição ao Combate”, mas o que é o Combate? Para você caro leitor o que e o combate? Será que existem vários tipos de combate? O combate físico é a primeira noção que nos vem, mas existem outros tipos? Encarar os projetos no trabalho, as dificuldades familiares, os embates pessoais, será que esses desafios podem ser classificados como combates? Creio que sim, e ouso afirmar que entre os vários combates que enfrentamos na vida a contenda física é a menos importante.
Esse questionamento foi feito ao grupo pelo Grão Mestre Leo Imamura, já na nossa primeira reunião e nos quebrou a todos, sequer sabíamos o que buscávamos explorar. Daí gerou uma busca por entender a amplitude do tema com a finalidade de delimita-lo para ser trabalhado.
Após várias discussões chegamos à conclusão que buscávamos investigar como os elementos não físicos do kung fu (dos quais destaco a vida kung fu que entre outros envolve a convivência com o Sifu, o zelo com o Mogung/ambiente de treino, as cerimonias, a organização de eventos como a própria visita da liderança) poderiam ser catalizadores para nos preparar para as múltiplas formas de combate, inclusive a corporal.
Escutei desde muito cedo na família kung fu que essas explorações não físicas favorecem o desenvolvimento da expressão corporal do Ving Tsun (Wing Chun), e isso muito me intrigava. Por isso, o tema se mostrou bastante oportuno ao que eu queria/precisava (novamente os céus me favorecem). Não irei dividir as respostas que galguei, as julgo muito personalíssimas e temo que possa poluir o processo do caro leitor em sua própria jornada kung fu.
Então tínhamos o tema “Ving Tsun (Wing Chun) da Tradição ao Combate – construção da Habilidade Marcial (Kuen Gei)”, daí seguimos montando o roteiro, dividimos a programação em cinco atividades, na primeira seria no formato de palestra e buscaríamos ampliar nosso entendimento sobre o que é combate; a segunda, terceira e quarta atividade foram corporais e estudamos o combate a partir de distancias diferentes, media-longa-curta; a montagem da última atividade foi realizada no sábado à noite e teve por base as experiências dos participantes, construímos na hora juntos.
O processo kung fu requer uma capacidade de oitiva atenta, tudo que se faz é apoiando-se no que o outro e a situação entregam, a vitória é cedida pelo adversário. Sei que frases como essa soam incompreensíveis em um primeiro momento, mas isso também faz parte do processo, não se sinta deixado de lado, suas dúvidas e até descrença são previstas pelo sistema de Kung Fu Ving Tsun, o Sigung Leo Imamura por várias vezes mencionou a importância de se estar preparado para o despreparo do outro, e quanto mais me debruço sobre esta frase, mas complexa me parece.
Minha ideia inicial era detalhar as atividades e aprendizados proporcionados, contudo, ficou claro que tornaria o texto excessivamente longo, por isso vou concentrar a experiência e focar mais nos efeitos.
Na construção das atividades tivemos inúmeras reuniões com o Sigung Leo Imamura em muitas delas saímos frustrados por não haver tido uma boa recepção das dinâmicas pensadas, isso não devido as nossas ideias serem ruins, mas em razão de estarmos desconectados com o que era importante: o entendimento de como se dá a construção de um Sistema de Kung Fu.
Durante o evento foi ficando evidenciado a cada atividade que quando o trabalho se baseia em um Sistema de Kung Fu os efeitos desejados “resultados” acontecem como consequência lógica do processo.
Lembra do tema? E da dúvida de como uma atividade não física melhora seu desempenho físico? Pois bem, na montagem dos eventos, na convivência com os líderes, na troca atenta com os mais velhos, existe um convite ao próprio refino.
Entenda que a atenção a grandes efeitos é esperada de todos, mas a percepção de mudanças sutis e significativas permite a tomada de uma posição de privilegio, onde se colhe o fruto positivo quase sem que seja feita qualquer “força”. Não entendeu? Deixe-me exemplificar: facilmente conhecemos uma pessoa mais colérica que em momentos de tensão tem respostas enérgicas, bem como pessoas mais apáticas que reagem com menor velocidade e ímpeto aos estímulos do ambiente. Quem dos dois reage melhor? A resposta é depende, as respostas precisam estarem conectadas com o que a situação exige, não existe revide que funcione independentemente do ambiente. Consegue entender?
É isso que o convívio com o mestre nos educa, a dar a resposta apropriada a cada situação. Essa relação é o pilar do aprendizado e cada pessoa terá uma relação diferente com o seu mestre, e isso se mostra oportuno: somos diferentes e precisamos de respostas diferentes.
Isso faz lembrar certa vez que Buda caminhava com seu discípulo Ananda e três homens, em momentos distintos, perguntaram sobre Deus, então Buda deu a cada um uma resposta distinta e isso intrigou o discípulo que questionou o mestre da razão, recebendo a seguinte resposta:
Buda disse: “Ananda, a primeira coisa que você tem que se lembrar é que estas perguntas não eram as suas, e aquelas respostas não foram dadas para você. Por que você deveria se preocupar com elas? Elas não são da sua conta, mas algo entre mim e aquelas três pessoas”. E assim também é relação mestre/discípulo no kung fu, cada discípulo receberá a resposta que precisa
Não tenho a pretensão em rasas linhas de explicar o que é um Sistema de Kung Fu, até porque o processo passa necessariamente pela experiência corporal e de vivencia, porém tenho por certo que quando se colhe as virtudes que um sistema porta o florescer dos resultados/efeitos se estendem na vida por tempo indeterminado.
Por fim, novamente expresso gratidão por me acompanhar nessa minha jornada que também é sua, vez que não existe missão mais nobre ao homem do que construir a si mesmo. Não consigo precisar os alcances de tudo que me foi proporcionado, espero que essa energia transformadora que experimentei não esvaneça engolida pela apatia e cansaço das sociedades modernas. Que possamos manter a chama viva, certos de que, como diria Marco Aurélio em seu livro Meditações: “Nada acontece ao homem que não seja próprio do homem”.
Caio Esmeraldo